A nova geopolítica energética e o carro elétrico

A edição de 17/03/2018 da revista The Economist trouxe uma reportagem especial sobre geopolítica energética de leitura recomendável para qualquer pessoa que atue direta ou indiretamente no setor de energia, em seu conceito mais amplo.

Dentre várias abordagens interessantes, a reportagem explora com muita propriedade o conceito de “energy democratization”, segundo o qual as novas fontes de energia renováveis que se tornaram viáveis economicamente nos últimos anos, como as de fonte solar, eólica e biomassa, possibilitaram que países antes altamente dependentes da importação de petróleo e gás natural equacionassem suas necessidades energéticas com projetos de energia renovável de pequeno, médio e grande portes.

Segundo o artigo, os países e comunidades antes dependentes energeticamente ganharam “super poderes” sobre suas fontes de energia, reduzindo tal dependência de países antes posicionados como “super potências”, em razão de suas grandes reservas de hidrocarbonetos, como a Rússia e alguns países do Oriente Médio.

Em outras palavras, a escassez de recursos energéticos, que por muitos anos sustentou o preço do petróleo no mercado internacional, está sendo gradativamente substituída pela diversidade e pluralidade de fontes energéticas, por conta do estágio de maturidade alcançado por fontes de energia limpa. A substituição de energia de fontes fósseis por energia de fontes renováveis, além de trazer benefícios inquestionáveis sob o ponto de vista de redução de emissão dos gases de efeito estufa – GEE, altera de forma significativa na geopolítica energética, democratizando a geração de energia, ampliando o seu alcance a comunidades não abastecidas e reduzindo os poderes dos grandes produtores mundiais.

A reboque da nova geopolítica energética, a indústria dos veículos elétricos vem ganhando bastante destaque. Embora muita atenção seja dirigida aos Estados Unidos, por conta principalmente do visionário Elon Musk e da sua montadora Tesla, e a alguns países europeus, que estão limpando suas matrizes energéticas, estabelecendo metas agressivas de redução de emissões e banindo veículos movidos a combustíveis fósseis, o país que mais investe em energia limpa e que lidera a corrida pelo carro elétrico é a China, que está se tornando a Detroit do carro elétrico, conforme artigo recente publicado pela Bloomberg.

Em Julho de 2017, a McKinsey&Company divulgou relatório detalhando que as montadoras chinesas produziram 43% dos 873 mil veículos elétricos colocados no mundo em 2016 (Alemanha e os Estados Unidos ficaram em 2º e 3º lugares, com 23% e 17%, respectivamente) e a China já concentra a maior frota de veículos elétricos do mundo. Foram 650 mil novas unidades vendidas em 2016, contra 160 mil nos Estados Unidos, o 2º em volume de vendas.

Os principais fatores que explicam a expansão das fontes alternativas de energia e do carro elétrico na China são a poluição do ar nos grandes centros chineses, que já ultrapassou em muito os limites tolerados segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS e a forte dependência energética do país. A China é o maior importador de petróleo e o maior consumidor de carvão mineral do mundo, atualmente com mais de 4 trilhões de kWh de eletricidade gerada pelo minério, representando mais de 70% da matriz energética chinesa (para efeitos de comparação, o total de energia elétrica consumida no Brasil em 2016 foi de 520 bilhões de kWh).

Ou seja, a China possui uma matriz energética extremamente “suja” e uma enorme dependência energética, contando, por outro lado, com muitos recursos para serem aplicados em infraestrutura de redes de transmissão e unidades de carregamento de veículos elétricos (EV-charging infrastructure). Caso seja levado adiante o processo de expansão de projetos de geração de energia renovável na China, de forma que esta seja a energia a ser utilizada para recarregar as baterias dos carros elétricos, o crescimento da frota de tais veículos poderá ter um impacto muito positivo na redução de emissões de gases de efeito estufa – GEE.

Sim, ninguém questiona que o carro elétrico pode ser uma alternativa importante para a redução de emissões de GEE. Não é preciso ser especialista para observar que não sai qualquer gás ou fumaça pelo escapamento de um Tesla ou veículo similar. Ou melhor, não há escapamento nestes veículos, assim com outros diversos componentes de carros a combustão interna que deixam de existir nos veículos elétricos, dando lugar a grandes baterias produzidas com lítio, cobalto, níquel, alumínio e outros minerais.

No entanto, para se verificar o real impacto do carro elétrico sob o prisma de potencial redução dos GEE deve se levar em consideração a análise do ciclo de vida – ACV do combustível utilizado, no caso, a energia elétrica que alimenta a bateria. A análise não é feita somente na emissão de GEE no escapamento do veículo, o que constituir-se-ia numa visão míope, mas deve levar em consideração todas as emissões de GEE ocorridas durante a produção do combustível, do berço ao túmulo (cradle-to-grave) ou, se preferirem, do poço à roda (well-to-wheel).

Nas palavras de Jim Lane, do periódico Biofuels Digest, “if you’re driving an electric car, you’re driving the grid, and the grid isn’t all that green, yet.” Exemplificando, se você substitui um veículo movido à gasolina ou diesel por um veículo elétrico na Noruega, onde a matriz energética é predominantemente limpa, você está fazendo um ótimo negócio em termos de sustentabilidade; por outro lado, se você substitui um veículo movido a etanol por um veículo elétrico na China ou nos Estados Unidos, onde a matriz energética ainda é predominantemente à base de carvão e de carvão e gás natural, respectivamente, você estará fazendo um mau negócio em termos de sustentabilidade e de emissões de GEE, ao menos enquanto estes países não limparem suas matrizes, o que ainda deverá demorar algumas décadas.

Trazendo o debate à realidade local, seria importante observar, primeiramente, de onde viria a energia elétrica para carregar as baterias dos carros elétricos no país em caso de substituição parcial da frota leve. Embora o Brasil possua uma matriz energética limpa, a crise hídrica observada nos últimos anos reduziu de forma significativa o volume de água nos reservatórios das usinas hidrelétricas (que respondiam por cerca de 70% da geração total no país), de forma que a energia marginal gerada no país, e que seria utilizada para alimentar as baterias dos veículos elétricos, é proveniente de fontes fósseis, como carvão mineral, gás natural e até óleo mineral (a última acionada pelo Operador Nacional do Sistema – ONS). Nos últimos anos, mesmo com o país enfrentando sua pior crise econômica, fator que reduz bastante o consumo energético, a ONS teve que recorrer diversas vezes às termelétricas a carvão mineral, gás natural e óleo diesel, que foram acionadas por longos períodos, aumentando o custo de energia paga pelo consumidor brasileiro. Ou seja, ao substituir um veículo do ciclo Otto por um veículo elétrico no Brasil, o consumidor não estará fazendo, ao menos no curto e médio prazo, um bem ao meio ambiente.

Além disso, o Brasil é o 2º maior produtor de etanol do mundo, atrás dos Estados Unidos, com uma produção atual de cerca de 25 bilhões de litros por ano. De acordo com estudo recente feito pela Associação Brasileira de Engenharia Automotiva – AEA, em avaliação feita sob o critério de ACV, o veículo movido a etanol tem uma emissão total de 45 gCO2e/km, muito abaixo da emissão de um veículo elétrico na Europa, com emissão total de 139 gCO2e/km. Caso se opte pelo uso de etanol nos veículos híbridos, as emissões são reduzidas para 23 gCO2e/km. Isso sem se falar nas demais alternativas de rotas que levam ao aumento de produção ou uso mais eficiente do etanol, como a utilização de cana energia, produção de etanol celulósico, tecnologias de veículos híbridos com etanol e de célula combustível desenvolvida pela Nissan, entre outras que, isoladas ou em conjunto, podem resultar inclusive em emissões negativas de gCO2e/km, com captura de GEE da atmosfera. Neste aspecto, o governo brasileiro tem feito o seu papel, por meio de iniciativas como o Rota 2030 e o recém aprovado RenovaBio, que incentivam o desenvolvimento de novas tecnologias e o aumento de eficiência na produção de biocombustíveis no Brasil.

Para concluir, os veículos elétricos serão muito bem vindos, mas a melhor opção do consumidor brasileiro preocupado com questões de sustentabilidade e de redução de GEE ainda é, e por muito tempo continuará sendo, a utilização do etanol, seja ele o de primeira geração ou o celulósico, de segunda geração, produzido de palha ou bagaço de cana.

Bernardo Gradin é formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com MBA pela The Warton School of Business e mestrado em Política Internacional pela Universidade da Pensilvânia. É membro do conselho executivo da Abiquim, membro do conselho do CNPEM e líder da Comissão de Bioeconomia da CNI. Em 2011, Gradin fundou a GranBio, empresa de bioenergia focada em soluções inovadoras para produção de biocombustível e bioquímicos.

FONTE: ABBI