A vida em um smartphone: Como a tecnologia transforma o cotidiano dos chineses

Os grandes facilitadores do dia a dia chinês são os super apps, como o WeChat, lançado em 2011 pela Tencent

A vida na China das grandes cidades cabe todinha em um smartphoneAlimentação, vestuário, locomoção, entretenimento, comunicação, serviços bancários… Praticamente tudo está ali, a um toque de distância. Ágil como convém a um país com pressa de chegar ao futuro. “Do ponto de vista do consumidor chinês, a prioridade é o digital”, diz a Época NEGÓCIOS Jeffrey Towson, professor da Escola de Administração Guanghua, da Universidade de Pequim. A internet conta com cerca de 830 milhões de usuários no país — quase a totalidade (98,5%) deles móveis, segundo dados do China Internet Report 2019, relatório elaborado pelo jornal South China Morning Post e pela plataforma Abacus

Os grandes facilitadores do dia a dia chinês são os super apps, os aplicativos tudo-em-um. O WeChat, por exemplo. Lançado em 2011 pela Tencent, o maior e mais utilizado portal de serviços de internet da China, é erroneamente comparado ao nosso WhatsApp. Ele oferece muito mais do que apenas serviços de bate-papo e chamada de vídeo. É como se juntasse, em um único lugar, Facebook, Instagram, Amazon, Skype, Uber, Paypal e iFood. Outro aplicativo no estilo 1001 utilidades é o Alipay. Além de funções semelhantes às do WeChat, o app do grupo Alibaba está ainda conectado com o maior site de compras dos mundo, o Taobao, queridinho dos jovens. Os dois aplicativos são ligados à conta bancária dos usuários e permitem a transferência automática.

Recentemente, o governo autorizou os estrangeiros a ter um cartão pré-pago do Alipay. É o fim da angústia de quem visitava o país e enfrentava dificuldade para pagar as contas com cartão de crédito e/ou dinheiro. A China funciona à base das carteiras digitais. Até pedintes e moradores de rua recebem suas esmolas via aplicativo — por QR code. Se esse cenário lhe parece surreal, prepare-se… O pagamento com reconhecimento facial já é realidade em diversos estabelecimentos chineses. A integração da inteligência artificial com o comércio tradicional e eletrônico traz o futuro para o presente. “A transformação na vida dos consumidores foi enorme”, diz o professor Jeffrey. “Eles passaram de um sistema subdesenvolvido para esse em que é possível fazer tudo pelo smartphone.”

O impacto da tecnologia no cotidiano chinês é tão grande que, nos apartamentos mais novos, a cozinha praticamente inexiste. É mais fácil pedir delivery — nas grandes cidades, a refeição não demora nadinha a chegar. São 20 milhões de deliveries de comida por dia — cerca de 1,5% das refeições diárias são pedidas pelo celular. Há ainda aquelas famílias que começam a se mudar para perto dos grandes supermercados, que não cobram nada pela entrega.

A facilidade de acesso aos produtos e pagamentos online naturalmente transformou o modo como os chineses compram. E eles compram muito. Segundo um levantamento da GSMA Intelligence, em 2018 o ecossistema digital movimentou US$ 750 bilhões — o equivalente a 5,5% do PIB. O Alibaba transformou o Dia dos Solteiros, em 11 de novembro, em um grande festival de compras online. Ao término das 24 horas, o conglomerado de Jack Ma havia feito US$ 38 bilhões.

A tecnologia dos super apps favoreceu também inovações na economia compartilhada. Segundo o Fórum Econômico Mundial, esse setor deve representar 20% do PIB chinês, em 2025. A oferta de itens para compartilhamento só cresce. Carros elétricos, bicicletas, casas, roupas, itens de luxo, bolas de basquete, guarda-chuvas, carregadores de celular… Cabines para dormir, cabines de maquiagem, cabines de karaokê, cabines de academia, cabines de consulta médica, cabines e mais cabines… Seis em cada dez consumidores já compartilharam pelo menos um produto.

O entusiasmo dos chineses está também no entretenimento online. Segundo a consultoria americana McKinsey, os chineses com menos de 35 anos passam até 11% do tempo assistindo, criando e divulgando vídeos em aplicativos como o da TikTok, da empresa ByteDance — e que está fazendo um sucesso danado entre os adolescentes brasileiros.  Os jovens costumam passar metade do tempo em que estão acordados com os olhos vidrados na tela do smartphone, em aplicativos de mídias sociais. Os preferidos são o WeChat e o Wibo, o Twitter chinês.

Em um relatório de tendências econômicas, publicado pelo Instituto de Economia da Academia de Ciências Sociais da China, o pesquisador Wang Yufeng compilou os três principais fatores que contribuem para o desenvolvimento bem-sucedido das tecnologias digitais no país:
1) o tamanho do mercado chinês e a base de usuários;
2) o ecossistema digital criado pelas gigantes Baidu, Alibaba e Tencent;
3) e o modelo “primeiro testa, depois regula”.
O terceiro fator, segundo Wang, é o que dá às startups ousadia para experimentar sem medo de errar e escalar.

Há de se levar em conta ainda que, na China, o investimento na transformação digital não vem apenas do setor privado. Lá, a mão do governo central é pesada. Direciona os setores, dando as coordenadas de quais deles serão desenvolvidos primeiro e fazendo a mobilização dos recursos necessários. Em 2015, as lideranças chinesas lançaram o ambicioso plano Made in China 2025. O objetivo é, nos próximos cinco anos, levar o país ao patamar de potência global industrial e tecnológica. Para tanto, o governo e as empresas estatais vêm implementando uma série de projetos de inteligência artificial e robótica, inclusive com o auxílio do sistema 5G. A alta tecnologia está por todos os cantos, nas câmeras espalhadas pelas grandes cidades, por intermédio das quais o governo avalia o comportamento dos cidadãos e determina quem merece pontos positivos (ou negativos) no sistema de crédito social.

A China quer deixar de ser o país da mão de obra barata e onde tudo se copia para ser o país das tecnologias sofisticadas, que inspira e que é copiado. Quer ser a nação dos engenheiros e cientistas da computação. “Inovar para as empresas chinesas é uma questão de sobrevivência”, disse Mark Greeven, autor do livro Pioneers, Hidden Champions, Changemakers, and Underdogs — Lessons from China’s Innovators e estudioso do ecossistema das startups chinesas, em evento realizado por Época NEGÓCIOS, no início do ano. Criar tecnologias que revolucionam e facilitam o dia a dia das pessoas não é um desafio inédito para os chineses. Algumas das invenções mais importantes para a humanidade vieram da China. Pólvora, papel, seda, macarrão, sorvete, compasso, bússola… And counting…

FONTE: ÉPOCA